segunda-feira, 10 de maio de 2010

Maletta de coração

No centro de Belo Horizonte, frequentadores, lojistas e moradores do condomínio tentam resgatar o charme perdido


Por Bruna Cris, David Batista e Pablo Estanislau





Um gigante adormecido. É essa a impressão que alguns têm do condomínio Arcangelo Maletta, que agrega três edifícios da década de 1950 no centro de Belo Horizonte, entre a rua da Bahia e a avenida Augusto de Lima. Dividido entre apartamentos, galerias de lojas e salas comerciais, o complexo já foi espaço da efervescência cultural belo-horizontina entre os anos 1960 e 1970. Passados 51 anos de sua inauguração, frequentadores, lojistas e moradores veem seu status se tornar uma lembrança pálida, ainda que os tons de saudosismo permaneçam.

A cidade em volta cresceu e se modernizou. Hoje, bares cinquentenários, restaurantes tradicionais e sebos de livros passaram a dividir espaço com anacrônicas copiadoras e lan houses. Os estudantes universitários Débora Ferreira e Rui Tófani tornaram-se habitués da galeria buscando aquele charme original. “Sempre gostamos do clima do Maletta, e já chegamos a frequentar os bares todos os dias”, conta Débora. No entanto, notam que o ambiente já não é mais o mesmo. “O espírito antigo era fascinante, mas hoje já não há o que instigava a muitos. Hoje, na minha sala, poucos vêm ao Maletta, e alguns nem sequer conhecem”, afirma Rui.

A história é o maior valor agregado ao condomínio, como podem atestar clientes e comerciantes. Os edifícios foram erguidos sobre o que foi a primeira grande hospedagem de Belo Horizonte: o Grande Hotel, construído na década de 1900 e adquirido por Arcangelo Maletta em 1923. Como atesta Abílio Barreto, na obra “Belo Horizonte: memória histórica e descritiva”, o prédio original foi derrubado 34 anos depois para dar origem ao empreendimento funcionalista. Na inauguração, uma novidade: a instalação da primeira escada rolante da capital mineira.

Com o passar dos anos, a escada deixou de funcionar, como conta o ator Amauri Reis, hoje síndico do condomínio. “Certamente tem o valor histórico envolvido, mas a instalação está toda quebrada por baixo. Seria necessário gastar cerca de R$ 200 mil no conserto”, estima. Com a escada parada, lojistas reclamaram da diminuição do movimento, mas sempre há quem vá ao local em busca de uma ligação com o passado.



Entre militantes de esquerda e neo-punks

O comerciante Greudo Catrambi inaugurou a livraria Eldorado em fevereiro de 1969, e percebe que alguns dos velhos clientes continuam frequentando. “Quando abri a loja, era mais fácil achar roupa íntima feminina no centro de BH do que livros”, conta Catrambi, que teve entre os fregueses vários subversivos da época da ditadura. Muitos deles contavam com a proteção do sr. Olímpio Peres, garçom da Cantina do Lucas, tombada pelo patrimônio histórico e que está na galeria do Maletta há 48 anos.

“Sr. Olímpio era comunista e dava apoio ao pessoal de esquerda que frequentava o restaurante”, conta Circeia Costa, gerente da Cantina. “Quando chegava algum agente do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), era ele quem sinalizava. Ele até criou o nome de alguns pratos para poder se comunicar, como a Salada Russa e o Filé à Cubana. Se ele dissesse que não havia, os clientes tinham que dar um jeito de sair rápido”, relembra. Para todos os efeitos, a Salada Russa é composta de maionese de batata, cenoura e beterraba, ervilha, presunto, passas e maçã, enquanto o Filé à Cubana é feito com a carne à milanesa, batata palha, banana, abacaxi, ovo, cebola francesa e bacon. Sr. Olímpio morreu já há seis anos, mas seu legado permanece no cardápio da Cantina.

Amauri Reis, antes de morar no condomínio, frequentou os bares da galeria durante muitos anos. “Era obrigação vir para o Maletta após a estreia de alguma peça, era o centro da vida cultural de Belo Horizonte. E aqui todo mundo é normal, todos comem torresmo com a mão no [bar] Xok Xok, até o [ator] Paulo José”. Na época, era possível trombar nos corredores tanto com astros da televisão quanto com prostitutas e travestis. “Quando conheci, diziam que o Maletta tinha uma fama muito ruim, de local de uso de drogas e meretrício, mas hoje já não há mais nada daquilo, que era até divertido. É muito mais careta”, avalia Reis.

Quase quarenta anos depois, a fauna cultural é radicalmente oposta: saem os militantes e entram os neo-punks adolescentes. “Volta e meia vêm alguns deles, procurando locais escuros na sobreloja para beber vinho escondido. Parecem morcegos”, segundo Herbert Batista, porteiro do condomínio há 19 anos. No meio deles, resistem alguns jornalistas, publicitários, advogados e artistas. Mas não que o Maletta não aceite a modernidade. “É o condomínio mais democrático de Belo Horizonte”, segundo Circeia Costa. Como é possível comprovar nos mais de 400 apartamentos dos blocos residenciais, ocupados por estudantes, famílias, trabalhadores assalariados e, como resume o síndico, “gente de todo tipo”. “Recentemente, até estiveram por aqui alguns jovens de Moçambique, que vieram fazer faculdade no Brasil”, conta o porteiro Herbert.



Silêncio e renascimento

A parte residencial do condomínio é constituída por dois edifícios: o Maletta, com 31 andares e 13 apartamentos por andar, com um ou dois quartos cada, e o Genoveva, com moradias de quatro quartos. Juntos aos 20 andares de salas e às lojas da galeria, o condomínio agrega 1.108 pequenos imóveis. Apesar das centenas de moradores, os corredores são surpreendentemente silenciosos, tanto de manhã quanto à noite. Barulho é questão ocasional, somente em alguma reclamação de som alto após as 22h. “É a mesma coisa de um prédio de dois andares. Mas é encantador viver em um prédio em que, quando você desce para a rua, está no meio da vida agitada e ruidosa”, diz Amauri Reis.

O silêncio acumula-se por anos, no entanto, nas paredes descascadas e na pintura envelhecida. O próprio síndico admite o desgaste físico do condomínio, causado em parte pelo próprio desinteresse dos moradores e proprietários de lojas. “As pessoas não lutam pelo patrimônio e só se candidatam ao cargo de síndico visando a salários maiores e às isenções, não ponderando que, se valorizar o prédio, também se valoriza o patrimônio”, conta Reis. No entanto, para ele, a acomodação também é um traço cultural de agora. “Quem se reúne hoje para lutar por alguma coisa que não seja o próprio bolso? Ninguém! É uma das coisas que fez com que o Maletta perdesse parte do seu charme. Durante a ditadura, os artistas tinham necessidade de um canto para se agrupar, para discutir política. Com a democracia, ninguém mais pensa em favor de todo mundo”, compara.

Revitalizar o condomínio, apesar dos reveses, está nos planos do síndico/ator. “Quero promover um resgate dessa essência cultural do Maletta, trazer de volta os artistas. É de nosso interesse que o lugar seja bacana. Precisamos rever toda a história deste local. É necessário ser Maletta de coração”, afirma Reis. Como melhor define o gestor cultural Luiz Carlos Garrocho, frequentador da galeria: “Uma cidade tem que ter lendas. E não são os lugares fashion que produzem fabulações. Estas nascem da vida do povo”.

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